O Sporting é irracional. Tem um processo diferente da razão. Viva o sonho...

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Avó.

Enquanto arrumava as coisas da minha avó encontrei este cartão, que ela guardou desde sempre e deixou num envelope entre as coisas que queria que ficassem comigo. Foram muitas as tardes que de mão dada atravessámos a cidade, autocarro 35 até à Avenida do Brasil, a paragem mesmo em frente ao Júlio de Matos onde um maluco residente nos pedia pão queijo e banana ao ouvido (a Avó uma vez levou-lhe uma carcaça com queijo e banana e o maluco chorou à nossa frente) e onde apanhávamos um outro autocarro até Alvalade. Anos seguidos de treinos diários, de viagens de autocarro, anos seguidos em que a minha avó se sentou nas bancadas vazias da nave do velho estádio, a tricotar, enquanto eu treinava no campo o basquete e na alma o sportinguismo. Em dois destes anos fui campeão nacional e esses títulos são também da minha avó que, sem falhas nem atrasos me levou e me trouxe a todos os treinos, me coseu emblemas de leão rampante em equipamentos listados, que também lavava, sempre à mão, e diligentemente tinha prontos, secos e cheirosos para o próximo jogo ou treino. Que me incutia confiança e relativizava os insucessos. Que no fim do treino tinha sempre uma sandes embrulhada em papel e um sumo de laranja natural num tupperware verde que servia só para aquele efeito. Nunca falávamos dos treinos no regresso, nem dos jogos ganhados ou perdidos, embora a maneira como me abraçava variasse conforme os resultados. Nas derrotas eram sempre mais apertados e longos, nas vitórias mais eufóricos, mas sempre silenciosos e contidos por causa dos meninos que perderam. Ainda assim o orgulho com que ela dizia à família e à vizinhança que eu jogava no Sporting era quase maior que o que eu tinha por envergar aquela camisola. Sei também que ela aprendeu neste processo a gostar muito do clube. Lembro-me que nas suas viagens românticas com o seu namorado tardio (este namorado tardio merece uma crónica só dele, que um dia farei. O Pinto, leão de ouro e fundador de uma das primeiras claques do Sporting nos anos 40) pela Europa, os destinos eram definidos pelas deslocações da equipa. Assim a Avó estava na Holanda para ver aquele grande golo de cabeça do Gomes contra o Vitesse, deu guarida no chão do seu quarto de hotel a dois dos nossos (como sempre dizia- "dos nossos") que não tinham onde ficar em Milão, pagou em Inglaterra várias refeições que ficaram por pagar no restaurante por gente "dos nossos" para que não ficassem com má impressão dos portugueses ou, pior ainda, dos sportinguistas. Era assim a Arménia, minha avó e uma "dos nossos". Ainda nestes seus últimos dias, em que me pedia sempre mais um bocadinho com ela no hospital e me agarrava a mão com mais força quando percebia que eu tinha de ir-me embora, quando lhe disse que ia sair mais cedo porque ia à bola soltou a mesma frase de sempre : "vai e porta-te com juizo, não te metas em problemas que os nossos (sempre os nossos) não são assim". No dia seguinte quando cheguei ao hospital perguntou-me se tínhamos ganho, "sim Vó ganhámos" "quantos?" perguntou-me, "3-0 ao Belenenses" "3?? ah valentes! coitaditos dos belenenses" e deu-me a mão outra vez para continuar a morrer.

domingo, 18 de agosto de 2013

As mãos.


Regressados do retiro selvagem no litoral alentejano. Agora a caminho de outra selvajaria, primeiro jogo do campeonato. Domingo à tarde, a lembrar-me de ti aqui no defunto Caleidoscópio, de mãos dadas a caminho do nosso sacramento amoroso, num templo com altares de cimento e cores garridas. 
Tenho saudades de ir contigo à bola, de quando eras tu que me levavas e eu só abria muito os olhos. Mas agora é diferente, vendem-nos o amor em "boxes" e outros provincianismos, sentamo-nos desconsolados e assistimos a meros jogos de futebol. Antes vínhamos ser felizes. 
Apesar de tudo faz uma certa diferença.
Ainda assim agradeço a doença, como lhe chamaste um dia. Oferta estranha para um hipocondríaco como eu. Mas seja, aqui nos matamos lentamente de encontro a esperanças infundadas.
Antes isso que cancro.


Anexo 1. 
Saudades das tuas mãos pequeninas. Saudades até de mim.
(respondeu o meu pai)

Anexo 2.
Hoje foi dia de mãos. De mãos dadas, de mãos pequenas de que se sentem saudades, das nossas mãos antigas de que nos lembramos pouco e de uma mão cheia de golos numa tarde quente de futebol.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O Mercedes verde.




Tarantela. As mesas começavam a ganhar vida. Uma outra vida. A vida de depois do almoço.
       -Dá leite à máquina.
Gritava o gerente para o balcão. Havia sempre alguém que de uma das mesas repetia a ordem. O velho gerente, já sabia que isso iria suceder, mas irritava-se, irritava-me sempre.
De repente chega o Jorge P saído da cama para a mesa do café. O cheiro a Aramis, o cabelo “lavado” com champô seco.
Antes do bom dia ou boa tarde, dispara:
      - É pá hoje é a final da taça de andebol entre o Sporting e o Porto.
      - Onde? (Pergunta alguém.)
      - Na Guarda.
      - Na Guarda? Estás maluco.
Mas ouve alguém se prontificou a ir buscar o Mercedes se houvesse o número necessário de loucos para irem e para se dividir o preço da gasosa.
       - Dormimos lá. (Alvitrou outro.)
Tudo acertado, reunidos os doentes suficientes, fomos ao trabalho. Buscar os adereços necessários: cachecóis, bandeiras, etc., e a roupa indispensável para uma noite.
 - Meia hora e tudo aqui.
Assim foi. A auto-estrada acabava em Vila Franca de Xira. Longo e incómodo o caminho. Fomos parando e fomo-nos reabastecendo e alegrando.
O Mercedes andava bem. Os quilómetros a percorrer é que eram muitos.
Chegámos à Guarda já era noite. Fomos logo para o pavilhão. Quando olhámos para a bilheteira um letreiro demolidor:
ESGOTADO.
- E agora?
- Não há problema venham comigo. (Disse o Jorge P.)
Fomos. Direitos à porta do pavilhão. O Jorge P. dirigiu-se ao porteiro e disse que vínhamos de Lisboa e não tínhamos bilhete, se havia alguma maneira de entrar, (o paleio do costume). Nada. O incorruptível porteiro continuava firme.
Num repente o Jorge P. dispara:
   - Fazia o favor de dizer a alguém que vá chamar o Bessone Basto e lhe diga que estão aqui uns amigos de Lisboa.
   - O Bessone Basto?
   - Sim, o guarda-redes do Sporting.
Passado algum tempo apareceu o grande Bessone. Dissemos que tínhamos vindo de Lisboa, que não havia bilhetes….
O Bessone virou-se para o porteiro e disse:
    - São meus amigos e convidados, vão entrar comigo.
Atordoado o porteiro nada disse.
Entrámos e assistimos a uma grande vitória do Sporting.
No fim do jogo acabámos no balneário no meio dos campeões. O Jorge P. tomou, vestido e contra vontade, o banho da sua vida.
O Sporting tinha ganho mais uma Taça de Portugal em andebol.
Nós também beijamos essa Taça.



Jorge Carvalho Ferreira
 -Cavaleiro Apocalíptico honoris causa, distinto sócio do Sporting Clube de Portugal, bastião moral e inspirador do sportinguismo na sua variante apocalíptico-poética, grão-mestre do sofrimento atroz e da bizarria leonina, estimadíssimo pai-